No ano de 2020, as manifestações nacionais e internacionais tiveram a pauta de que vidas negras importam. Mas, vidas negras realmente importam? No Brasil, de acordo com dados do IBGE, 54% da população é negra. Importante mencionar que a pobreza também tem cor no país, entre os 10% mais pobres, 75,2% são negros. Grande parte desta população realiza trabalhos informais. Em uma sociedade estratificada, sem possibilidade de mobilidade social e estruturalmente discriminatória, uma simples procura no google evidencia a existência de racismo no Brasil e para tanto compartilho aqui alguns exemplos: 

  1. João Alberto Silveira Freitas foi espancado em 19 de novembro de 2020 até a morte em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, ele era um homem negro. Tal ato evidencia uma “filtragem racial” praticada por agentes de segurança pública que é replicada por seguranças privados; 

  1. Natan Vieira da Paz foi condenado em processo judicial no Paraná em 08 de outubro de 2020 com o seguinte argumento: “(...) sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante de grupo criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta (...).”. Natan é um homem negro; 

  1. O Laboratório Fleury foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho em 08 de dezembro de 2020 nos autos do processo 1000390-03.2018.5.02.0046 pela prática de discriminação racial, uma vez que o guia de padronização visual elaborado para os seus empregados tinha uma “estética padrão” voltada apenas para pessoas brancas, sem nenhuma foto de negros, sendo utilizado como fundamento para advertir diversas vezes uma funcionária negra em razão do uso do cabelo Black Power; 

  1. Michele Monteiro, 42 anos, grávida de 09 meses diagnosticada com sopro e pressão alta, o que caracterizava a sua gravidez de alto risco, tentou internação em ao menos quatro hospitais. Ao conseguir sua internação às 10h05 explicou que não poderia ter o filho por parto normal, pois suas quatro gestações anteriores foram difíceis. Já estava em trabalho de parte, mas a autorização para a cesárea veio às 0h20. A todo momento, implorava pela cesárea e pela anestesia, pois não aguentava mais. Como resposta, ouvia frequentemente: “Mas como? Você teve quatro filhos, dois normais, dois fórcepses. Por que você não tenta mais um? Você é forte, vai conseguir.” Michele Monteiro é uma mulher negra. 

Evidente que os negros antes escravizados, após a abolição, se tornaram “pessoas rejeitadas”, excluídas dos processos de políticas públicas. Durante anos, acreditávamos que eram tratados como “iguais”, mas foram deixados à margem do sistema. Assim, essa exclusão evidencia ainda mais a desigualdade, a pobreza, a miséria e a humilhação. Por não fazerem parte do sistema, não ocuparem cargos públicos, altos cargos em empresas privadas ou não serem “doutores”, são tratados como simples peões, portanto, descartáveis. Muitas vezes, não são ouvidos, ficam literalmente mudos dentro da sociedade.  

Assim, o racismo cria múltiplos níveis de injustiça social. O racismo faz diferença. Ser negro no Brasil faz diferença. A verdade desanimadora é que continuará a fazer se não sairmos dessa inércia, reconhecendo a existência do racismo, e adotando em nossas ações diárias práticas antirracistas. Ninguém nasce racista, logo, ao adotarmos práticas antirracistas, pelo exemplo, alteramos a realidade social.  

O ordenamento jurídico repudia o racismo, mas tais atos não foram capazes de alterar o processo de exclusão dos negros na sociedade brasileira e que gera tantas desigualdades. Somente a promoção de ações afirmativas pelo poder público e por empresas privadas é capaz de romper com o ciclo da desigualdade. As ações afirmativas tem como objetivos: (a) eliminar os efeitos persistentes da discriminação do passado de que tende a se perpetuar; (b) incluir uma maior diversidade nas atividades públicas e privadas; (c) concretizar o ideal de igualdade de oportunidades; e (d) dar voz aos excluídos. 

De uma forma mais específica, as políticas de ação afirmativa “têm por objetivo garantir a oportunidade de acesso dos grupos discriminados, ampliando sua participação em diferentes setores da vida econômica, política, institucional, cultural e social”.(Jaccoud & Beghin, 2002). 

Tais valores, que inspiram as regras e princípios que compõem o ordenamento jurídico pátrio, devem servir de propósito à atuação das instituições, governos, agentes públicos, políticos e de toda a sociedade civil, sempre no sentido de apoiar e incentivar quaisquer ações que visem a abolir, erradicar e reduzir o racismo institucional/estrutural, a discriminação étnico racial e as desigualdades sociais fundadas em preconceitos. 

No âmbito do Sistema Único de Saúde existe uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) que visa combater às desigualdades existentes e promover a saúde da população negra de forma integral, entretanto embora criada por intermédio da Portaria GM/MS n° 992, de 13 de maio de 2009 não foi até hoje devidamente implementada em muitos municípios do nosso país. 

Nesse sentido, há muito ainda para fazermos, mas não podemos nos esquecer da frase de Carolina Maria de Jesus: ”A mudança não virá se esperarmos por outra pessoa ou outros tempos. Nós somos aqueles por quem estávamos esperando. Nós somos a mudança que procuramos”.