A pandemia tem afetado inevitavelmente a vida de milhares de pessoas. No Brasil, o impacto tem sido percebido em diversos aspectos, sobretudo na saúde mental de uma parcela que representa cerca de 56% das pessoas: a população negra — de acordo com uma pesquisa feita em 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 

Além do vírus, são muitos os fatores que atingem a saúde mental das pessoas negras durante a pandemia. As causas são históricas e diversas, que têm como origem a colonização portuguesa, na qual partiu do princípio eugenista para escravizar aqueles corpos. O racismo no Brasil se perpetua até os dias atuais, se reverberando e se intensificando em diversas áreas e aspectos sociais, tais como: institucional — práticas racistas presente nas instituições, podendo serem vistas  na questão do Brasil ter um maior encarceramento da população preta, representando 66,7% dos presos no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública —, o racismo individual — práticas e ações de violências individuais — e o racismo estrutural — que é a prática da violência naturalizada e entranhada na sociedade brasileira, fruto dos 300 anos de escravidão no país.  

Dados como o grande número de suicídios entre pessoas pretas, sendo 6 em cada 10 casos em 2019, mostram apenas uma das violência presentes em suas vivências, cabe analisar também, que dos 150 milhões de brasileiros que são totalmente dependentes do SUS (Sistema Único de Saúde), 67% deste número são pessoas negras. Pode-se entender então, que a falta de políticas públicas destinadas à saúde, não é apenas mais um dos descasos dos governantes para com a população, entende-se como mais uma expressão do racismo institucional, pois a instituição Estado nega a saúde a parcela do povo que mais carece de cuidados. A partir de políticas de desmonte do SUS, faz com que o sistema esteja sobrecarregado, e enfrente dificuldade para suprir as carências desses habitantes. O acesso a tratamentos relacionados à saúde mental é um direito humano básico, e deve ser gratuito, de qualidade e popular no Brasil, através do SUS. 

Em entrevista com Diana Malito, doutora em psicologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é possível entender algumas das consequências do racismo na saúde mental de pessoas negras. Segundo Malito, “um dos efeitos do racismo é o adoecimento psíquico” tendo como exemplo “quadros depressivos, transtornos relacionados à paranoia, transtorno de pânico, estresse pós-traumático (após violências policiais, por exemplo). Os efeitos do racismo estão capilarizados em várias camadas da existência pessoal e social, desde a construção de si enquanto sujeito, da autoestima, até a possibilidade de construção de relações afetivas saudáveis, da relação consigo próprio e com o mundo”; concluiu Malito. 

Diana Malito, Psicóloga. Foto: Arquivo Pessoal. 

A falta de condições básicas de sobrevivência, como a taxa de desempregabilidade que é 58% maior entre pessoas negras, em relação a pessoas brancas, afeta diretamente o âmbito mental. Essa afirmação pode ser percebida historicamente, sobretudo, na negligência ao cuidado com a saúde mental da população negra e a perpetuação de estereótipos em relação às vivências experienciadas por essa parcela da sociedade, que representa a maior parte dos brasileiros.  

De acordo com a psicóloga, Sulamita Rangel de Oliveira, mulher preta remanescente quilombola (residente do Quilombo Maria Romana, segundo distrito de Cabo Frio), especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, e pessoa com deficiência visual. "A pandemia [...] mostrou para a sociedade onde estão os negros de nosso país [...] Visualizamos outra abordagem do preconceito que a população detentora do poder permaneceu em casa, mas não concedeu eficazmente o benefício para seus empregados, que acabaram escolhendo entre saúde e alimentação, tendo como consequência em alguns casos, as suas vidas ceifadas para alimentar sua família. A desumanidade em tempos difíceis dissipou patologias na saúde mental da população negra.", afirmou a psicóloga. A falta de oportunidade no mercado de trabalho reflete o racismo presente na sociedade brasileira e seu passado escravocrata, definindo empregos de maior e menor valor e suas respectivas remunerações, não as capacidades da juventude preta. 

 Sulamita Rangel, Psicóloga. Foto: Arquivo Pessoal. 

A OSC (Organização da Sociedade Civil) BemTV, tem mostrado serviço a uma parte da população negra dentro dos territórios de Niterói, São Gonçalo, Maricá e Itaboraí. Uma vez que o projeto chamado Jovens Comunicadores é focado na juventude periférica dessas cidades com o objetivo de, além de contribuir a se manter firme por esse momento, dar formação aos jovens que tiveram poucas oportunidades de fazerem cursos para agregarem conhecimento e experiência em seus currículos.  

Segundo Thais Amaral, uma das monitoras do Projeto: "O intuito é criar uma rede de cuidado e profissionalizar o jovem." Sobre o quanto a juventude negra de periferia sofre nas mãos do racismo, ela afirmou: "Quando você cresce sabendo que você tem que andar com a carteira de identidade porque a qualquer momento você pode ser parado pela polícia, quando você entra no shopping e o segurança não sai de trás de você ou quando você tem que 'ajeitar' seu cabelo pra passar numa entrevista de emprego… Tudo isso afeta o psicológico do jovem, tudo isso interfere de alguma maneira na vida dele. Dessa forma, você chega para o jovem que está correndo atrás do seu emprego, que tem que sustentar sua família ou tem uma criança pequena para alimentar e diz assim: 'Para! Ficaem casa!' Como dizer isso? A BemTV para falar sobre isso com esses jovens, reformulou o trabalho com o jovem. Não é só dar dinheiro, é construir Rede, é fortalecer territórios." 

Dados Socioeconômicos com base nas turmas dos Jovens Comunicadores de Setembro e Outubro/2021 

Turma de formação do Jovens Comunicadores em 2021.  

De acordo com a OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o risco de mortalidade no Brasil pela Covid-19 foi 1,5 vezes maior na população negra. As populações consideradas vulneráveis foram as mais prejudicadas pela pandemia, tendo em vista que as principais vítimas da Covid-19 foram idosos — representando cerca de 90% — e minorias sociais, como negros, pardos e indígenas. Segundo Daiane Maria da Silva, moradora do Preventório, comunidade em Niterói, “[...] a pandemia veio para deixar o pobre mais pobre ainda. [...] Os Negros foram maioria no percentual de mortes na pandemia.”. Para além dos impactos da pandemia, é fundamental entender as razões pelas quais os cidadãos negros são os mais afetados. 

 Daiane Maria, Confeiteira, moradora do Preventório em Niterói. Foto: Arquivo Pessoal. 

Como forma de solucionar o negligenciamento da saúde mental da população negra, em 2009 foi instituída a PNSIPN (Política Nacional de Saúde Integral da População Negra), a qual trouxe a reflexão sobre as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional que são fatores que definem as condições de saúde. Essa instituição foi elaborada e pensada porque mesmo que, como dito ao longo do texto, mais da metade da população brasileira seja negra — pretos e pardos — o acesso à saúde pública ainda é de difícil acesso para esse grupo. O foco principal desta pauta é a democratização das políticas públicas com uma maneira de visibilizar os efeitos do racismo institucional e indagar os profissionais e os gestores da área da saúde. 

Os movimentos sociais nascem a fim de lutar contra o sistema ao qual o mundo, de modo geral, está submetido. Assim, o movimento negro brasileiro vem lutando e resistindo a mais de 500 anos, sucessivos a escravização de seu povo. Ao analisar a música faixa do músico e ativista Emicida, “Principia”, o artista ressalta: "Tudo, o que nós tem, é nós", deste modo, a alusão citada pode ser analisada pela falta de políticas públicas efetivas voltadas para as comunidades postas à margem da sociedade. Existem diversos fatores que competem a esta problemática, mas a principal pauta é buscar romper com os traços eurocêntricos e coloniais, vigentes de uma sociedade que foi moldada para favorecer pessoas brancas, cisgêneras, homens, heterossexuais e pessoas que não portam algum tipo de deficiência crônica ou física. 

Podemos analisar o caso de Larissa Moura, uma mulher negra de 19 anos, estudante de serviço social na UFF (Universidade Federal Fluminense) e uma jovem comunicadora da BemTV. Larissa relata sobre sua experiência durante a pandemia, em que muitas questões influenciaram a saúde mental, mas o pivô foi o isolamento social e a questão econômica, quando se deparou com o desemprego de seu pai – um fator muito marcante durante o período pandêmico no país – a pressão e a insegurança acerca do seu futuro é um fator de peso significativo para a jovem.  

A jovem comunicadora continua: “Eu nunca me senti pertencente a algo, sempre achei que em determinado espaço não era o meu lugar, o que desde pequena foi muito presente, e o que também acarretou em eu ser muito insegura, e ter bastante traumas", relatou. Porém, hoje ela recebe tratamento psicológico adequado e tenta levar a vida da melhor maneira possível, cultivando afetos familiares e amizades. 

Larissa Moura, estudante de Serviço Social. Foto: Arquivo Pessoal. 

Não é de hoje que a população negra se organiza de forma coletiva para pensar em possibilidades de melhoria de sua existência no mundo. Sendo assim, as pessoas negras num coletivo sempre estiveram mais vulneráveis a problemas de saúde mental, o que com a pandemia do covid-19 se intensificou. Como também são pessoas com menor poder econômico, tratar as questões de saúde mental pode ser um desafio, tendo em vista os problemas relacionados ao racismo que são enfrentados na saúde pública. Como alternativa, existem coletivos e redes de apoio feitos de negros para negros, como o Quilombo Urbano Xica Manicongo, em Niterói, inaugurado no dia 29 de outubro de 2021, pela primeira vereadora trans do município, Benny Briolly. O local é um espaço de fortalecimento para pessoas pretas e LGBTIA+. Redes de apoio e aquilombamento são sistemas  de afeto e qualidade de vida muito importantes para a promoção da saúde mental da população negra como um todo.  

A saúde mental da juventude negra no Brasil é marcada pelo racismo, sendo as desigualdades enfrentadas durante a pandemia apenas um dos exemplos dos quais a população preta está sujeita. É fundamental estimular o debate sobre a importância do acesso ao cuidado em saúde mental desse grupo e fornecer condições para tratamentos, como a formulação e respeito às políticas públicas. Ser preto no Brasil é viver na luta e resistência! Como diz a escritora Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”, não morrer em todos os sentidos: físico, mental, emocional e espiritual. Visibilizar a importância da saúde mental e da inclusão no atendimento psicológico, é uma das formas de resistência ao sistema racista a qual a sociedade está submetida.